Uma vez, numa entrevista que me concedeu, Abdias Nascimento disse que ele foi preso, enquadrado na Lei de Segurança Nacional, viveu no exílio por 10 anos, sem ter nunca integrado qualquer partido clandestino de combate à ditadura.
- Tudo o que eu fiz foi combater o racismo.
Era uma forma de mostrar que esse tema sempre foi tratado como inconveniente. Na ditadura, era proibido. Isso era subversivo o suficiente para os ditadores da época. Hoje ainda é delicado e difícil. Sua vida foi dedicada a tratar desse assunto intratável.
Como jornalista, teatrólogo, escritor, cineasta, artista plástico, senador, militou na mesma causa: construir um país realmente multiracial com a derrubada, de fato, de todas as barreiras que impedem a ascensão dos negros no Brasil.
Não um país que finge não ver as diferenças para proclamar a igualdade, mas o que constrói as pontes fortalecendo a autoestima dos pretos e pardos brasileiros e abrindo oportunidades. Foi por esse Brasil que Abdias lutou.
Abdias abriu espaços notáveis na cultura brasileira para essa sociedade com a qual sonhou por tanto tempo. Quilombo era um jornal dos anos 1950 que abriu a discussão do combate ao racismo. O Teatro do Negro foi outra iniciativa pioneira que revelou inúmeros talentos para a dramaturgia brasileira, numa época em que atores brancos pintavam o rosto de preto para fazer os papéis de negros. Na militância foi um dos fundadores do Movimento Negro Unificado.
As conversas com ele e sua mulher Elisa Larkin, americana de nascimento, eram sempre ricas de reflexões sobre velhos vícios do Brasil, como o de negar o problema.
Nos últimos anos ele viu duas notícias. A boa é que é visível a formação da classe média negra e do aumento do poder de pretos e pardos no Brasil. A ruim é que as distâncias permanecem enormes e uma parte do país prefere não discutir o tema, insiste em ficar em atalhos que fogem da questão central. A desigualdade racial ainda é enorme no Brasil.
Outro dia fui ao Sindicato dos Jornalistas do Rio no lançamento do Prêmio Abdias Nascimento. Sindicato ao qual ele se filiou em 1947.
Ele já estava doente, mas a cerimônia aconteceu ainda assim. Lá eu disse que Abdias, que tinha 97 anos, foi precursor e persistente no mesmo sonho ao longo da vida inteira: a de combater o racismo em todas as suas formas.
Fará falta Abdias, mas quem sonha com um Brasil de menos desigualdades, sabe que ele combateu o bom combate.
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