Assisto com perplexidade o ‘frisson’ em torno da oficialização da união estável entre um dos herdeiros da coroa inglesa e uma plebéia da classe média britânica. O evento é vendido como a realização de um conto de fadas da Casa de Windsor. Eles sabem produzir um show midiático. Morei no Reino Unido por alguns anos e posso afirmar que tudo isso que lá acontece é encarado com a maior seriedade e alegria pelos seus súditos. Estudava no Hackney College em Londres e lembro-me bem do orgulho que os ingleses sentem pelo império “onde o sol nunca se põe”. Orgulham-se do poderio bélico nuclear, da vastidão do território colonial, do futebol que ‘inventaram’, do chá das cinco, das antigas tradições, dos Beatles e Rolling Stones. A força do império britânico pode ser medida pela representatividade atual de algumas das suas principais ex-colônias: EUA, Austrália, Singapura, África do Sul, Índia, Nova Zelândia, Brunei, Hong Kong, Jamaica, Honduras, Guiana e Belize, entre outras. O Império Britânico chegou a possuir cerca de 40 milhões de quilômetros quadrados e 500 milhões de habitantes. Um dos grandes responsáveis pela expansão foi Henrique VIII, o fundador da Igreja Anglicana, da Marinha Real e que cultivava o hábito de recitar poesias, apreciar a boa música e cortar as cabeças de suas esposas, seis no total. Existiram grandes impérios como Mongol, o maior de todos em extensão, construído por Gêngis Khan na Ásia Central, no século XIII. Apesar de não ter sido o maior em extensão territorial, o Império Romano foi o mais organizado no que se refere à gestão político-administrativa, arquitetura e urbanismo e organização militar. A pompa e as demonstrações de riqueza e poder dos impérios devem muito, ou tudo, à escravidão e exploração de seres humanos, pilhagens e saques, assimilação forçada da cultura alienígena, ocupação territorial pelas armas, sevícia coletiva de mulheres e crianças, enforcamentos, crucificações e toda a forma de flagelos. O centro de toda a plataforma econômica que fortaleceu a Europa no período pré-revolução industrial deu-se através do seqüestro, tráfico transatlântico e escravização de 11 milhões de africanos e 9 milhões de indígenas no Novo Mundo, das Guerras do Ópio na Ásia e da conquista e exploração de novos territórios coloniais ao redor do globo.. A Inglaterra colaborou imensamente com a escravidão através da transformação nos estaleiros de Liverpool e Plymouth, de centenas de navios comerciais em horrendos navios negreiros – menores e mais velozes, para trazerem os africanos seqüestrados que eram capturados na África Subsaariana. A exploração de suas colônias, com o sacrifício dos povos nativos enriqueceu a Inglaterra e quase todos os países europeus. Essa era a matriz do padrão global de colonização de todos os impérios que se erigiram em nosso planeta. Os hebreus foram escravos no Egito, os mamelucos eram escravos egípcios, os mongóis escravizaram os chineses, os povos eslavos dos Bálcãs foram escravos de diversos impérios (talvez de eslavo venha a palavra escravo, de ‘slave’ em inglês ou ‘sklave’ em alemão). Os heliotes eram escravos em Esparta. Enfim, onde há ou houve grande prosperidade, a escravidão e a exploração de outros povos sempre foram seus pilares. O tamanho do custo civilizatório e da riqueza do Reino Unido foi absurdamente alto para países como Índia e China. Os ingleses perpetraram um dos maiores crimes da humanidade que foi o tráfico de ópio para a China. A Inglaterra era a maior traficante de drogas daquele tempo. Eles levavam tão a sério a comercialização da droga na Ásia que produziram as famosas ‘Guerras do Ópio’, a primeira em 1839 e a segunda em 1856. Em 1840 a China importava anualmente do reino Unido cerca de 450 toneladas de ópio, ou seja, um grama para cada um dos 450 milhões de habitantes da China na época. A droga representava a metade da balança comercial sino-britânica. Nesse período a droga ameaçava diretamente a economia do país, assim como a segurança interna, através da deterioração da saúde dos soldados. Assistindo a derrocada do país um ministro chamou a atenção do imperador, com um aterrorizador comunicado: “Majestade, o preço da prata está caindo por causa do pagamento da droga. Em breve, vosso império estará falido. Quanto tempo ainda vamos permitir este jogo com o diabo? Logo não teremos mais moeda para pagar armas e munição. Pior ainda, não haverá soldados capazes de manejar uma arma porque estarão todos viciados”. Em seu livro “Mar de Papoulas” o escritor indiano Amitav Ghosh narra a incrível saga do navio inglês Ibis, que traficava ópio para a China. O livro imperdível traça um panorama de realidade que conjuga a ação e aventura contida em Dumas com a profundidade de Tolstoi e as emoções de Charles Dickens. Ghosh construiu uma grande obra, que certamente já conquistou seu lugar na galeria dos grandes clássicos.Em relação ao enlace, não me agrada de jeito nenhum essa arcaica demonstração imperial, em tempos tão modernos, com tanta miséria e exclusão social em todos os recantos do planeta. Não entendi como o mundo inteiro pode parar para assistir um casamento de duas pessoas que já vivem juntas há 8 anos e com aquela carruagens emplumadas e personagens que parecem fantasiados de 'generais de opereta', como bem disse o bom Veríssimo. Não vamos nem considerar a piada do Monty Python que disse estar o Príncipe Philippe meio ‘apagadão’ e ao acordar teria perguntado quem era o louco que estava se casando.
Meu apanágio é ficar solidário com a memória daqueles que sofreram e morreram sob as piores atrocidades, para que a pompa imperial e o fausto se instalassem. Solidarizo-me com as famílias que perderam seus entes queridos no tráfico negreiro, na dormência do ópio ou no genocídio dos povos indígenas. As imagens enaltecidas e replicadas do evento foram distribuídas para todo o mundo como exemplo de organização, riqueza e poder. Foi uma clara demonstração eurocêntrica que o projeto de globalização e expansão capitalista necessita sobreviver. Mesmo que para isso se trabalhe o inconsciente coletivo de nossa ansiosa aldeia global.
Meu apanágio é ficar solidário com a memória daqueles que sofreram e morreram sob as piores atrocidades, para que a pompa imperial e o fausto se instalassem. Solidarizo-me com as famílias que perderam seus entes queridos no tráfico negreiro, na dormência do ópio ou no genocídio dos povos indígenas. As imagens enaltecidas e replicadas do evento foram distribuídas para todo o mundo como exemplo de organização, riqueza e poder. Foi uma clara demonstração eurocêntrica que o projeto de globalização e expansão capitalista necessita sobreviver. Mesmo que para isso se trabalhe o inconsciente coletivo de nossa ansiosa aldeia global.
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