Sete anos após deixar o governo Lula, no qual foi assessor especial da Presidência, o escritor e assessor de movimentos sociais Frei Betto é um entusiasta da experiência do PT no poder e crítico ferrenho dos dirigentes da sigla. Em meio à crise política e ao impacto do lançamento do programa Brasil sem Miséria, Frei Betto falou ao Estado. Ele elogiou o plano social e não poupou ataques à direção petista no caso Antonio Palocci: "Já não encontro os dirigentes dando consultoria a movimentos sociais".
Entrevista concedida a Fernando Gallo - O Estado de S. Paulo, em 12-06-2011
Como o sr. analisa a saída de Antonio Palocci do governo?
O governo demorou a agir diante da crise que se instalou a partir da constatação desse surpreendente aumento do patrimônio. Isso gerou muitas dúvidas. Dilma, diante de casos como esse, deveria seguir o exemplo do ex-presidente Itamar Franco, que licenciou o Hargreaves (Henrique Hargreaves, ministro da Casa Civil acusado de irregularidades no cargo) até que as coisas ficassem claras. Comprovada sua total inocência, foi reintegrado. No caso do Palocci, houve uma suspeita que os próprios correligionários abraçaram. O fato de a Executiva do PT não emitir uma nota de apoio, de solidariedade, era sintoma de que no partido pairavam dúvidas. Ali foi o momento em que Dilma deveria ter tomado a providência de afastá-lo.
O episódio pode ser considerado um indicativo de que o PT mudou seus ideais ao virar governo?
Exatamente. Nunca me filiei a nenhum partido político, mas ajudei a construir o PT, assessorei muitos movimentos que formaram lideranças que hoje integram o PT e a política profissional. Lamento que os dirigentes do PT hoje deem consultoria aos donos do dinheiro. Andando pelo Brasil, já não encontro esses dirigentes prestando consultoria a movimentos sociais.
O PT revisou o seu projeto?
Ah, sim! No conjunto do partido, salvo exceções de honrosos militantes, o PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Quando se estende demasiadamente o bloco de alianças, há que fazer concessões. Elas levaram o PT a ter grande prestígio eleitoral, mas não é mais, infelizmente, o partido representativo dos movimentos sociais. Já não identificam nele o partido que vai enfrentar as forças que impedem reformas de estrutura no Brasil.
Em um olhar mais geral, para além da crise, que avaliação o sr. faz do governo Dilma?
Ainda é muito cedo para uma avaliação. A equipe de governo é boa. Tem muita gente que vem do governo Lula, já calejada. O governo está mantendo a política externa do Lula, que eu considero brilhante, e está aprofundando os programas sociais, o que é muito positivo. Não gosto do lema "País rico é país sem miséria". Devia ser "país digno", não "rico". Os Estados Unidos são ricos, mas têm 30 milhões de miseráveis. A China é rica e tem milhões de miseráveis.
O sr. vê alternativa fora das alianças feitas pelo PT?
É difícil governar sem alianças, concordo. Mas elas têm de ser feitas em cima de princípios, não de interesses. Quando os interesses aparecem, como no caso do Código Florestal, as divergências também transparecem. A posição do PT e a do governo não coincidiam com a de muitos membros da base, sobretudo a do PMDB.
Como viu a atuação do governo na votação do Código Florestal?
O PT ficou isolado, mas nesse assunto Dilma tem muita clareza e firmeza. Ela sabe que o Brasil vai abrigar no ano que vem uma importante conferência ambiental. Ela foi a Copenhague acompanhando Lula e assumiu compromissos internacionais. Espero que continue com essa posição firme de não ceder frente às flexibilizações da proposta aprovada na Câmara, que parecem prejudicar o meio ambiente e favorecer os desmatadores, aqueles que praticam assassinatos no campo, invadem a Amazônia com o agronegócio e derrubam árvores para fazer pasto.
O sr. já criticou o governo por suspender o kit anti-homofobia.
Pode ser um recuo tácito, mas o tema está em pauta. Você não pode ignorar uma questão que atinge milhões de brasileiros que têm uma opção de vida amorosa e sexual. Como a questão do aborto, também. O governo pode colocar debaixo do tapete, mas uma hora ela vai ter de vir à tona. São questões relevantes para a sociedade no mundo inteiro. Como um feliz ING que sou hoje - "indivíduo não governamental" -, penso que esses temas terão de ser encarados. Espero que Dilma, que tem passado de combatividade, venha a acabar com tabus e trazer mais luz a esses temas.
O governo se omitiu no assassinato dos líderes do Pará?
Para ser generoso, acho que agiu muito timidamente. Tinha de ter mandado ministros, o do Desenvolvimento Agrário, a dos Direitos Humanos. Deveriam ter ido à região, participado dos enterros, cobrado pessoalmente do governo do Pará, que não abre inquéritos. Deveria ter tido atuação mais rigorosa. No enterro do Chico Mendes, foi todo mundo. As pessoas que estão no governo se mexiam. As coisas são vistas pela TV, pelo jornal. Isso é inconcebível. Os mandantes e assassinos estão convencidos da impunidade. Você tem 98 mandantes e assassinos identificados e apenas um preso, que é o Bida, assassino da Dorothy Stang. Liberou geral o faroeste.
Apesar das críticas, o sr. disse que a experiência do PT no poder é a melhor da história brasileira.
Considero o governo Lula o melhor da história republicana, porque gosto muito do governo de d. Pedro II. Espero que o governo Dilma seja o prosseguimento do governo Lula, principalmente por causa dos avanços do ponto de vista social e à política externa. Minha expectativa é de que o governo consiga transformar políticas de governo, como o combate à miséria e a questão ambiental, em políticas de Estado. Que promova as sonhadas reformas de estrutura: política, tributária, agrária. Isso é urgente. Desde o início dos anos 60 o Brasil clama por isso.
Qual a sua avaliação sobre o plano Brasil sem Miséria?
Vejo com bons olhos. Ao menos no papel é um avanço em relação ao Bolsa Família. Espero, e desconfio, como bom mineiro, que o Brasil sem Miséria seja uma reedição do Fome Zero, que era um programa emancipatório. O Bolsa Família é um programa compensatório. Prova disso é que esse programa até agora não tem porta de saída. Quem entra não sabe como sair assegurando a própria renda e condições dignas de vida. O Brasil sem Miséria não só aumenta o número de famílias e os benefícios de três para cinco filhos até 15 anos, como abre perspectivas de funcionamento da porta de saída. Vamos ver na prática se funciona.
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