Amauri Queiroz

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Um dia te perdoarei por te trair...

“O amor, no meu entender, devia surgir de repente,
com ruídos e fulgurações,
tempestade dos céus que cai sobre a vida e a revolve,
arranca as vontades como folhas
e arrebata para o abismo o coração inteiro.”
(
Gustave Flaubert)
Recebo o e-mail de uma leitora que diz ser casada há 25 anos. Seu nome fictício é Clara. Ela enfatiza que vive em harmonia e afirma amar o marido profundamente. Mesmo assim, eventualmente, costuma sair e fazer amor fora do casamento. Sente-se dividida entre o que considera ser certo e o que conclama ser justo. O certo, ela diz, seria ser fiel ao marido, independente da situação. O justo, sentencia, é ser feliz e dar vazão à sua necessidade de ser valorizada e querida, mas além de tudo, cortejada e desejada.
Ela me diz que sempre teve uma vida tranqüila, talvez rotineira demais, mesmo no período de adolescência. Poucos envolvimentos, cidade pequena, namorado amigo de infância, flertes na pracinha, noivado, casamento, filhos, pão de queijo e missa. Tudo muito tradicional.
Ela conta que a partir do segundo filho as coisas começaram a mudar de rumo em sua vida. O marido invariavelmente a deixava só com os filhos nos finais de semana para ficar com os amigos no dogmático futebol e na essencialidade do boteco. Ela, filha de família tradicional, cumpria religiosamente o papel que a sociedade lhe destinou: cuidar da casa, dos filhos e do marido. A vaidade e a auto-estima desvaneceram-se nas brumas do tempo. O brilho do olhar tornou-se difuso e sem vida. No papel de esposa amante, nada de alegria, nada de harmonia, nada de fantasia. Somente o sexo invariavelmente obrigado, insuficiente, geralmente nauseabundo, cheirando à álcool e à atmosfera de botequim.
Viveu assim durante duas décadas, forçando o sorriso para a sociedade, fingindo orgasmos e criando os filhos. Vivia como uma sombra, aliás, era a sua própria sombra. Um estranho fantasma, que assombrava principalmente à si própria.
Um certo dia, enquanto flanava absorta pela cidade, fazendo compras, quando percebeu que alguém lhe olhava de maneira insistente. Era um amigo dos tempos de ginasial, agora com alguns fios grisalhos nas têmporas. Maduro mas muito bonito, mantinha o mesmo sorriso cativante de outrora. Encontraram-se no hortifruti e entre alfaces e rúculas um raio de fatalidade caiu sobre os dois. Foi como uma explosão atômica, um vigoroso vulcão jorrando sua lava incandescente para os céus, um tsunami emocional, o rompimento de um casulo escuro e úmido, onde uma larva amorfa esteve presa por longo tempo em hibernação, despertando então travestida em uma multicolorida e esvoaçante borboleta, abrindo suas asas à luz do sol e ao calor da vida. Willian Shakespeare
diz que quando o ancoradouro se torna amargo a felicidade vai aportar em outro lugar. E assim aconteceu.
Clara então passa a viver um conflito interno entre seu recém descoberto amor entremeado de emoção e desejo e um enorme sentimento de culpa. Sentada á mesa com à família, às vezes sentia-se suja e indigna de sua família, por estar se entregando de corpo e alma ao seu amante. Tentava esconder suas mudanças de comportamento e sua felicidade, sem falar da onda de ternura e amor que sentia pelo homem que a resgatou de volta para a luz. Embriagou-se com o vinho do amor, para o qual não existe antídoto. Para não morrer, dizia Toulouse-Lautrec, devemos sorvê-lo até a última gota.
A vida de Clara segue normal e seu marido de nada desconfia. Envolvido com o futebol e a turma do boteco, aliado ao sentimento de posse e domínio que sempre nutriu pela esposa, jamais imaginaria que ela ama outro homem e que é uma chama viva quando a ele se entrega. Sim, entrega total e verdadeira. Talvez por isso tenha-se originado o termo traição: do latim traditione, que quer dizer, entrega. Clara, nossa Madame Bovary das Vertentes, não se sente forte o suficiente como mulher, nem confiante o bastante como amante para dar fim ao seu casamento. Segue em sua vida dupla: entediando-se em casa e realizando seus mais profundos desejos através das maravilhosas e sofisticadas fantasias com seu amante. Quem ousa atirar a primeira pedra?

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